
Cinco dias, cinco noites foi o filme escolhido pela TV1, baseado num livro medíocre da Álvaro Cunhal, para homenagear José Fonseca e Costa. Não percebi o filme de que vi quase dois terços.
Tirando a cena inicial com uma bela reconstrução dos anos quarenta, algures numa aldeia de Trás-os-Montes, o filme arrasta-se penosamente por serras, montes e vales de deslumbrantes paisagens com abundantes florestas, cuja travessia é cheia de obstáculos.
André, um jovem de 19 anos contrata um «passador», de pouquíssimas falas, que o conduzirá, fugindo à guarda e à polícia política, até a fronteira de Espanha. As relações entre ambos são tensas porque o jovem desconfia que este o quer roubar mas posteriormente os dois homens acabam por se admirar mutuamente: como trama do romance é tudo e é muito pouco.
Diálogos muito curtos em duas casas pobres, pontos de apoio na rota do «passadores», em duas aldeias igualmente pobres. Tirando a beleza das paisagens, o filme é de uma confrangedora monotonia: não é o J.F.C. exímio contador de histórias, em lugar de arte é política, filme estragado.
Não terá sido por acaso que Álvaro Cunhal durante mais de duas décadas ocultou a autoria do livro.
Tendo uma fasta galeria de bons filmes de J.F.C., para escolher, em lugar de uma homenagem, a TV1 fez uma sabotagem: José Fonseca e Costa merecia muito mais.
Realizador faleceu esta manhã aos 82 anos
O cineasta José Fonseca e Costa faleceu hoje de manhã, confirmou à Lusa o produtor Paulo Branco, que estava a produzir o último filme do realizador, Axilas, baseado num conto do escritor Ruben da Fonseca.
A notícia foi avançada pelo Expresso, segundo o qual o realizador morreu hoje de manhã no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, de uma pneumonia, na sequência de uma pré-leucemia.
José Fonseca e Costa nasceu no Huambo, em Angola, a 27 de junho de 1933, e mudou-se para Lisboa em 1945.
Entre 1951 e 1955 frequentou o curso de Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que não terminou para se dedicar às atividades cinematográficas.
Membro da direção do Cineclube Imagem, fez crítica de cinema nas revistas Imagem e Seara Nova. Traduziu para português livros de teoria cinematográfica da autoria de Eisenstein, Guido Aristarco e alguns romances, entre eles, Il Compagno de Cesare Pavese e Passione di Rosa de Alba de Cespedes.
Concorrente ao lugar de assistente de realização da RTP (à data da sua fundação) foi impedido de entrar nos quadros da empresa por interferência da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), embora tenha ficado classificado em primeiro lugar.
Em 1960 foi-lhe recusada uma bolsa de estudo, solicitada ao Fundo do Cinema Nacional, para frequência de um curso de cinema no estrangeiro e, novamente por informação da PIDE, em cujas prisões foi encarcerado por atividades de oposição política à ditadura.
Iniciou a sua formação profissional estagiando em Itália, por volta de 1961, onde trabalhou com Michelangelo Antonioni no filme L'Eclisse (O Eclipse).
De regresso a Portugal, em 1964, produziu e dirigiu centenas de filmes publicitários e alguns documentários industriais e turísticos, atividade que interrompeu a partir dos anos 1970, quando dirigiu o seu primeiro filme de ficção (A Metafísica do Chocolate, 1967).
É um dos cineastas do movimento do Novo Cinema em Portugal. Seguem-se O Recado (1972), Os Demónios de Alcácer Quibir (1977) e Kilas o Mau da Fita (1981).
Foi sócio fundador e dirigente, nos anos 1960, do Centro Português de Cinema e, mais recentemente, da Associação de Realizadores de Cinema e Audiovisuais, de cuja primeira direção foi presidente.
Em 1998, foi nomeado para representar o Ministério da Economia no recém-criado Conselho Superior do Cinema, do Audiovisual e do Multimédia, onde nunca chegou a exercer funções.
Foi eleito para o Conselho de Opinião da RTP em sessão da Assembleia da República realizada a 2 de novembro de 2000.
Dedicava a sua atividade ao ensino universitário de disciplinas cinematográficas, à escrita de crónicas jornalísticas e de argumentos dos seus filmes.
Depois de Cinco Dias, Cinco Noites (1996), filme premiado no Festival de Gramado, nos Globos de Ouro em Portugal e selecionado para o Montreal World Film Festival, Fonseca e Costa assinou ainda O Fascínio (2003) e Viúva Rica Solteira Não Fica (2006), seus mais recentes trabalhos.
A 09 de outubro de 2014, a Academia Portuguesa de Cinema atribuiu-lhe o prémio de carreira.
P.S.
As referencias culturais do meu século já desapareceram quase todas.
Em 1810 existia em Londres um bairro onde eram apresentados shows de horrores com participações de anões, mulheres barbadas e outras atrações consideradas bizarras pelo povo na época. Dentre elas estava Saartjie Baartan, uma empregada doméstica africana de 25 anos que foi levada à Inglaterra pelo seu patrão Hendrick Caesar, que decidiu ganhar dinheiro apresentado-a publicamente como a selvagem Vênus Hotentote. Saartjie pertencia à tribo dos hotentotes, cuja característica predominante era o acúmulo de gordura nas nádegas e o chamado "avental hotentote", uma anomalia na região genital.
Ela fazia seu show dentro de uma jaula, com uma roupa que mais expunha do que escondia seu corpo e, instigada por seu "dono", dançava, atacava a plateia e era ridicularizada. Quando autoridades locais começaram a investigar e acusar Caesar de escravidão, eles foram embora para Paris. Lá, Saartjie passou não apenas a ser apresentada publicamente como uma criatura abominável, obrigada a participar de shows eróticos, mas também a se prostituir.
É esta história triste e verídica que o diretor e roteirista franco-tunisiano Abdellatif Kechiche (O Segredo do Grão) conta em seu Vênus Negra (Venus Noire, 2010), exibido no último Festival de Veneza e provavelmente um dos filmes mais chocantes do ano. Pesado e com longas cenas ininterruptas que mostram a horrível exposição pela qual Saartjie era vítima, é quase uma tortura assisti-lo. Mesmo assim, prende o espectador durante suas 2h40 de duração.
O grande destaque de Vênus Negra é a estreante atriz cubana Yahima Torres. Assim como a verdadeira Saartjie, ela tem seu corpo exposto na tela durante quase todo o filme e sua expressão é de apatia. Apenas em dois momentos sua personagem chora, em cenas que emocionam.
O questionamento por trás do roteiro é "até onde vai a curiosidade e a exploração humana perante algo ou alguém considerado fora dos padrões?". A história da Vênus Hotentote se passou no século XIX, mas a dúvida é pertinente também aos dias de hoje. Claro que não existem mais shows de horrores nas ruas, mas a nossa exploração da morbidez resiste You Tube afora. É impossível não manter os olhos fixos em Saartjie Baartan. Vênus Negra tenta entender a linha tênue que separa o curioso do humilhante.
P.S.
A República da Africa do Sul prestou-lhe homenagem postoma e em 2.002 o que restava do seu corpo e objecto relacionados com ela foram estraditados para a sua pátria.
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